A Cor Púrpura

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Direção:
Título original:
Gênero: Drama, Musical
Ano: 2023
País de origem: EUA

Crítica

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Sinopse

Celie enfrenta muitas dificuldades na vida separada da irmã e dos filhos. Sofrendo os maus tratos de um marido abusivo, ela encontra na sororidade uma força extraordinária para dar a volta por cima.

Crítica

Na maldisfarçada máquina de reprodução de fórmulas e sucessos do passado que Hollywood se tornou há tempos, A Cor Púrpura surge na categoria de filme baseado numa peça da Broadway que, por sua vez, era inspirada em outro de êxito das telonas. Os longas-metragens Nine (2009) e, recentemente, Meninas Malvadas (2023) são exemplos dessa estratégia. A “novidade” da vez é a segunda adaptação cinematográfica da história inicialmente contada no livro homônimo de Alice Walker. A primeira foi um dos mais célebres (e melodramáticos) trabalhos assinados por Steven Spielberg nos anos 1980. Se Spielberg ressaltou a aspereza da jornada de uma jovem negra crescendo oprimida no mundo agressivamente masculino dos anos 1910/20, tendo como cenário o interior dos Estados Unidos, o diretor Blitz Bazawule calibra o ponto de vista e os assuntos de acordo com as marés da atualidade. Mas, não atinge a carga emocional da produção anterior. Isso por conta da opção pela ênfase mais luminosa na esperança e na sororidade como antídotos. Celie (interpretada na juventude por Phylicia Pearl Mpasi e na maturidade por Fantasia Barrino) é separada cedo da irmã, Nettie (vivida na juventude por Halle Bailey e na maturidade por Ciara). Depois de dar à luz ao segundo filho resultante dos estupros do seu pai (Deon Cole), Celie é entregue às mãos de outro abusador, Mister (Colman Domingo), sujeito que utiliza o matrimônio como desculpa para ter a protagonista como escravizada sob seus domínios.

A grande novidade dessa versão de A Cor Púrpura é o fato de ela ser um musical no sentido mais estrito da classificação do gênero. Em coreografias bonitas e bem orquestradas, Blitz Bazawule coloca na boca de seus personagens melodias sobre sonhos que parecem impossíveis, dores capazes de nublar a capacidade de escolha e desabafos dos peitos inchados por tanta angústia. Visualmente falando, o filme se vale da suntuosidade em função do espetáculo, sem com isso passar uma demão de verniz amenizador na dureza dessa trama melodramática atravessada por dor e sofrimento. Desde o princípio o foco está na distorção provocada pela lógica patriarcal nas redondezas, um salvo-conduto para homens agirem como bem entenderem e fazerem das mulheres estritamente forças de trabalhos e objetos sexuais. Celie aguenta os maus tratos, as sucessivas agressões físicas e verbais, padecendo calada e raras vezes protestando contra o tratamento inaceitável. Separada da irmã, cada vez mais ilhada na realidade masculina que não dá brechas à sua subjetividade, ela vê uma luz no fim do túnel ao testemunhar a chegada de Shug (Taraji P. Henson), cantora de blues, filha renegada do reverendo local, alguém que, diferentemente dela, não abaixa a cabeça para ninguém e tem uma vida glamorosa. O grande acerto do filme, sobretudo no cruzamento entre as personagens, é desviar do clichê da rivalidade feminina, mesmo que Shug seja o grande amor de Mister, o homem que trata Celie como animal.

Curiosamente, à medida que o filme avança, os números musicais vão ficando mais raros e também menos importantes. Pelo menos, o roteiro assinado por Marcus Gardley compensa essa mudança com a entrada em cena do grupo de mulheres capaz de mostrar alternativas à sofrida Celie. Entre elas, o maior destaque é Sofia (Danielle Brooks), furacão devastando o terreno das proibições masculinas, colocando em xeque a forma como meninos são criados para chegarem a ser homens, tomando sucessivas atitudes de afirmação individual que encantam a protagonista ensimesmada. Nessa nova versão da trama, a sororidade (conceito em voga que representa a empatia, a solidariedade e o acolhimento entre mulheres) é o grande contraveneno do machismo constantemente encarado como uma sombra obscurecendo os aspectos femininos desse cenário humano. Enquanto constrói a rede de apoio inspiradora à protagonista, feita de mulheres poderosas dispostas a derrubar o sistema patriarcal a pontapés, o realizador sublinha a jornada emancipatória de Celie, valorizando desde seus gestos iniciais de rebeldia – como cuspir no copo de água de seu sofro vivido por Louis Gossett Jr., sinal de insurreição que indica o começo de uma revolta transformadora. O filme progride bem, até emocionando às vezes, mesmo que não tenha instantes notáveis como a primeira versão. E ele acaba desandando no terço final, no momento do enredo em que defende perdão e esperança como princípios vitais.

No todo, o elenco desse novo A Cor Púrpura apresenta um trabalho consistente e coeso, com destaque especial para Danielle Brooks, indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pela composição de uma personagem forte, a indomável e irredutível Sofia. Na única vez em que o filme coloca em perspectiva direta o racismo como elemento desagregador, é essa coadjuvante quem sofre nas mãos da branquitude de pensamento escravagista persistente. Num filme em que a sororidade é tão importante, salta aos olhos que Sofia seja oprimida por uma mulher branca, o que coloca momentaneamente o preconceito em evidência como fator sobreposto ao gênero nas discussões. Pena que Blitz Bazawule não evolua nessa observação da solidariedade feminina esbarrando na visão segregacionista dos brancos e das brancas. Ele utiliza os obstáculos impostos à personagem de Danielle Brooks como meio de mostrar o poder devastador do racismo se valendo de dispositivos legais para encarcerar e diminuir corpos negros. A se lamentar, também, que o filme esbarre num idealismo inocente ao tracejar redenções, ressurreições e celebrar os arrependimentos repentinos, como se fosse possível um opressor contumaz se conscientizar e virar a chave instantaneamente rumo à bondade. Porém, há instantes bonitos que arrematam os discursos antes da guinada rumo ao perdão como uma força mobilizadora, como quando Celie recebe carinho pela primeira vez em anos. Dentro do cinema.

Marcelo Muller

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