A Matéria Noturna

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Direção:
Título original:
Gênero: Drama
Ano: 2023
País de origem:

Crítica

4.1

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Sinopse

Jaiane trabalha como motorista por aplicativo em Vitória, Espírito Santo. Ela atravessa um período difícil, rejeitando companhias, até conhecer Aissa, um homem de Moçambique que trabalha embarcado, mas passa alguns dias pela cidade. Aos poucos, os dois solitários se aproximam.

Crítica

Existem movimentos distintos dentro de A Matéria Noturna (2021). O primeiro deles se encontra no aceno ao cinema de gênero: Jaiane (Shirlene Paixão), motorista de Uber no Espírito Santo, começa a se sentir oprimida por uma presença invisível. Ela manifesta uma angústia constante, representada pelo forte vento na janela, pelas batidas anônimas à porta, pela dificuldade de dormir e pelo impulso inexplicável de se aventurar nas escadas do prédio durante a madrugada. A jovem dorme numa praça de dia e acorda de noite, quando os portões estão fechados. A direção aposta na perseguição silenciosa a esta mulher, utilizando apenas o enquadramento, som, luz e duração dos planos, em registro similar àquele de A Noite Amarela (2019). Visto que a protagonista se considera infeliz com o trabalho, com a família e os relacionamentos amorosos, amargando o impacto de um aborto recente, esta seria uma forma de exteriorizar via natureza os conflitos pessoais. O desejo de romper com a determinação do espaço-tempo – o roteiro demora a confirmar que se encontra em Vitória – serviria tanto à universalidade da trama quanto ao senso de desorientação da protagonista. Ora, o investimento no suspense se interrompe – a partir do segundo ato, a narrativa prefere os rumos de um drama convencional. O mundo ao redor para de oprimi-la.

Outra vertente privilegiada pelo cineasta diz respeito ao romance entre Jaiane e Aissa (Welket Bungué). A partir do momento em que a edição alterna as duas histórias em paralelo, com a chegada do trabalhador numa embarcação, compreende-se que se encontrarão eventualmente, tecendo alguma forma de aproximação afetiva. O roteiro aposta na lógica previsível segundo a qual sujeitos perdidos tendem a se atrair quando cruzam os caminhos um do outro – existe algo mais romântico do que o pressuposto de um destino aproximando pessoas complementares? A união se concretiza em ritmo particular – os personagens principais encontram-se apenas no terceiro ato, levando tempo considerável para conversarem pela primeira vez. Então, a montagem acelera o relacionamento até o instante em que mal podem ficar separados. “Eu fiz uma cópia da chave pra você”, afirma a motorista ao sujeito que, aparentemente, acabou de conhecer. O ritmo se mostra curioso, esticando o aspecto contemplativo dos dois terços iniciais, para então, suprimir os detalhes do encontro prometido ao espectador desde a apresentação de Aissa. O longa-metragem desenvolve medidas peculiares, criando um ritmo de estranhamento dentro da história de teor convencional.

O aspecto de maior destaque diz respeito ao trabalho incomum de elipses – ou seja, os saltos temporais. Sem anunciar estes avanços através de letreiros nem divisão em capítulos, o diretor Bernard Lessa retira na edição o conflito central, revelando ao espectador apenas o antes e o depois, ou as causas e consequências dos traumas – seria essa a misteriosa “matéria noturna” do título? Após o plano curto de uma bolsa no chão, Jaiane afirma a uma amiga ter sido assaltada. Não vemos o assalto, os procedimentos com a polícia, nem a compra de um novo celular a seguir. Ela diz que “só faz trabalhar e beber”, mas vemos pouquíssimo de sua rotina profissional – sobretudo para a garota que passa as tardes dormindo na praça. Aissa afirma ter poucos dias em terra firme antes de retornar à embarcação, porém desperta a impressão de ficar longas semanas com o amigo e com o novo interesse amoroso. Adiante, ele aparece afobado, confessando ter quase se afogado no mar – mas jamais enxergamos este momento. A edição do próprio cineasta preserva os fragmentos que, nos filmes convencionais, cairiam no corte final, enquanto mantém tempos mortos, longos olhares absortos e digressões internas dos heróis perdidos em seus pensamentos. O autor opta por um registro voluntariamente hermético.

Esta inversão de prioridades, ocultando os conflitos principais, constitui um recurso dificílimo de concretizar – embora diretores como Stéphane Brizé o tenham feito com sucesso em A Vida de uma Mulher (2016), por exemplo. No caso brasileiro, o artifício torna os personagens opacos, e seus gestos, inconsequentes. Nunca compreendemos a experiência sentida pelo aborto, o roubo, a solidão, o medo noturno em Jaiane; nem o senso de não-pertencimento, a instabilidade em terras e a relação com os familiares distantes para Aissa. As possíveis metáforas (a profecia da vidente; os pontos luminosos no céu) são esquecidas, os amigos desaparecem da trama, os dilemas passados surtem impacto mínimo ou nulo nas atitudes seguintes. Os protagonistas são átomos livres, sem vínculos reais nem objetivos claros para o futuro. É difícil determinar por que o rapaz passaria o dia inteiro na casa de uma desconhecida, sozinho, adormecendo na rede, e compreender a relação pessoal da moça com o samba. Eles perambulam por espaços indefinidos (Esta é a casa dela? Da amiga? Os cenários mudaram?), em tempos indeterminados (Quanto tempo passou desde o carro quebrado até o conserto; e da chegada em terra à partida?). Restam mais perguntas do que respostas, no sentido de uma voluntária supressão de causas, origens e consequências.

O resultado está longe da aleatoriedade ou da aparência de erro: este estilo é cuidadosamente calibrado para resultado disperso, e as atuações – parte naturalistas, parte evasivas – são niveladas de maneira coesa. Shirlene Paixão e Welket Bungué constituem duas presenças confiáveis, hábeis no desafio de sustentar os longuíssimos planos focados em seus rostos, quando se solicita que efetuem minúsculas progressões de sentimento ao longo de vários minutos. O cineasta sabe o que está fazendo, e aparenta alcançar exatamente o intuito desejado. No entanto, ele demonstra um posicionamento muito mais firme do que aquele de seus personagens. O espectador terá dificuldade de se identificar com os protagonistas neste drama que nos afasta, ao invés de promover a imersão. A narrativa ocorre apesar do espectador, ao invés de para nós, ou por nossa causa. O público assume a incômoda postura de intruso, tendo acesso a fragmentos desconexos da experiência alheia – como se folheássemos em segredo o álbum de retratos alheio, com fotografias faltando. Existe uma história interessante espalhada pelos arredores do porto de Vitória, mas testemunhamos apenas uma parte dela. Alguns criadores possuem prazer em construir, oferecer e mostrar, enquanto outros preferem ocultar.

Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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