Até o Cair da Noite

14 ANOS 120 minutos
Direção:
Título original: Bis ans Ende der Nacht
Gênero: Policial
Ano: 2023
País de origem: Alemanha

Crítica

3.5

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Sinopse

Para revirar o submundo do tráfico de drogas, um investigador se infiltra no seio da bandidagem. Para isso, ele se aproxima de uma mulher que tem ligações profundas com um narcotraficante.

Crítica

Um dos grandes nomes de todos os tempos do cinema alemão foi o controverso Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), que morreu com apenas 37 anos, tendo realizado, em uma carreira de menos de duas décadas, quase quarenta longas-metragens (uma média de dois ou três por ano), além de curtas, minisséries para a televisão e projetos para o teatro. Uma passagem tão fulgurante e produtiva – além de reconhecida, tendo acumulado troféus nos festivais de Cannes, Berlim e Veneza, entre outros – é ainda mais sentida por ter acabado de forma tão abrupta. Desde então, é natural que sua influência seja percebida em maior ou menor grau em muitos dos seus seguidores. Porém, não adianta apenas insistir numa cartilha de referências e elementos em comum para a ele se igualar: é menos uma questão de querer, e, sim, de se ter ou não talento compatível àquele que tanto se admira. Eis uma conclusão fácil de se alcançar diante de Till The End of the Night, longa assinado por Christoph Hochhäusler (A Cidade Abaixo, 2010) que busca emular muitos dos sentimentos presente na obra de Fassbinder, sem, no entanto, ter a mesma habilidade – ou mesmo talento – para tanto. Ou seja, é como se a receita tivesse sido seguida à risca, por alguém desprovido de experiência para a partir dessa combinação emular aquele algo a mais que separam os gênios dos ordinários.

Um casal está se reencontrando após um tempo afastado. Leni (a estreante Thea Ehre) está feliz de estar de volta, após um ano passado na prisão. Robert (Timocin Ziegler, de Die Geschwister, 2016), o namorado, preparou uma festa-surpresa em seu apartamento para recebê-la. O clima é de comemoração. Aos poucos, no entanto, as fissuras desse relacionamento começam a se tornar perceptíveis. Uma amiga dela reclama dele nunca a ter visitado enquanto no cárcere. Outra reconhece que o local onde agora estão, que será destinado a vida a dois, pouco tem a ver com quem agora está chegando. Ele, por sua vez, demonstra esforço: colocou alguns balões, prepara uma sobremesa de última hora, e dela parece não conseguir se manter afastado, sempre com carinho e atenção. Uma imagem que cai por terra assim que o último dos convidados se despede. Uma vez sozinhos, o que havia sido acordado entre eles passa, mais uma vez, a valer: Robert é um policial, e Leni saiu antes do previsto de trás das grades apenas para ajudá-lo a conseguir provas que possam servir na condenação de um poderoso traficante, com quem ela manteve, tempos atrás, algum tipo de ligação profissional. Ou seja, cada um dos dois sabe bem qual é o seu papel dentro dessa relação.

Mas, tal qual muitas vezes se sucede em histórias como essa, o teatro que procuram manter vivo diante dos olhos dos demais não tardará a contaminar também suas ligações nos momentos em que estiverem sozinhos. Com um diferencial que, algumas décadas atrás, talvez até provocasse algum tipo de choque ou perturbação, mas que, em 2023, soa apenas como um elemento disruptivo barato, quase gratuito: Leni é uma mulher trans. Já Robert, que até então nunca havia se visto como parte da sigla LGBTQIA+, passa a questionar suas percepções e até que ponto estaria disposto a ir para fazer valer esse sentimento com o qual agora está se vendo obrigado a lidar. Eis, portanto, um contexto que nada de novo tem a oferecer aos cinéfilos de ocasião. E nem se faz necessário retornar até os anos 1970. Basta lembrar do oscarizado Traídos pelo Desejo (1992), de Neil Jordan, que transitava por cenários e personagens bastante similares. Porém, se lá estava no choque da revelação a chave de sua reviravolta dramática, aqui esse mistério inexiste, apostando suas fichas em um relacionamento condenado ao fracasso desde o seu instante inicial.

Os elementos são clássicos, e prestam suas devidas referências ao noir antigo. Porém, de nada adiantam ambientes escuros, uma dama fatal repleta de segundas intenções e um detetive que se reconhece atraído por um perigo do qual não consegue evitar para que se reconheça uma fórmula há muito desgastada. É preciso acrescentar algo de novo, e é neste ponto de Hochhäusler frustra as expectativas. O jogo duplo do policial não consegue ter consistência, e é certo que não tardará para ele se ver vítima das próprias artimanhas que até então se imaginava no comando. Leni, uma figura no mínimo interessante, seja pelo seu passado com a contravenção como pelas aspirações em relação ao futuro (“meu sonho é ser cantora”), passa todo tempo que dispõe em cena lutando por mais atenção, algo que a narrativa insistentemente se recusa em lhe oferecer: lentamente, Robert vai assumindo o protagonismo, a ponto de quando ela se fizer necessária para que um desfecho agridoce seja possível, tal intervenção se dará de forma quase desajeitada, uma vez que sua presença se dá mostra deslocada, não mais orgânica ao todo, ainda mais se comparado à metade inicial do longa.

Com elementos recorrentes no mínimo irritantes (qual o problema dele com os bonecos de pelúcia dela?) e passagens que seriam constrangedoras, não fossem apenas ridículas (o sexo que se dá com o vidro da janela do carro entre eles, terminando em um jato de gozo que serve apenas para reforçar a busca fútil masculina pelo prazer em detrimento da complexidade feminina em meio a um ato de entrega e suposta confiança), Till The End of the Night não convence nem mesmo com o básico – os chefões das drogas se mostram amadores em uma tecnologia que não dominam a ponto de julgarem descartável (apesar do tanto que alardeiam como inovadora), os embates físicos se revelam risíveis de tão ensaiados, e até mesmo o contraponto da policial atenta ao próprio colega resvala no embaraço (mensagens de batom deixadas no espelho? Sério?). Tivesse limitado suas ambições e resignado-se em apenas elaborar um bom conto policial, é provável que não tivesse despertado maiores interesses – por um lado – mas, também, geraria menores frustrações por ambicionar um espaço que, definitivamente, não possui condições de ocupar. Ir além do que muito se conhece é sinal de inquietação artística, é fato. Mas reconhecer o que se pode ou não realizar também não pode ser visto de forma leviana.

Filme visto no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023

Robledo Milani

é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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