Cuckoo

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Título original:
Ano: 2023
País de origem: Alemanha / EUA

Crítica

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Sinopse

Na companhia do pai e da madrasta, Gretchen viaja aos alpes alemães. A garota se depara com segredos obscuros na cidade turística onde os três se hospedam. Na medida em que mergulha nesse submundo, ela é atormentada por visões de uma mulher a perseguindo.

Crítica

Na tentativa de marcar um avanço, o que acaba ocorrendo é justamente o contrário: um problemático retrocesso. Esta é a mais provável conclusão diante do desastre impactado na tela por Cuckoo, longa exibido fora de competição – dentro da sessão Berlinale Special – no 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim. Escrito e dirigido por Tilman Singer (cineasta alemão cujo longa anterior, Luz, 2018, foi premiado no Fantaspoa, no Brooklyn Horror Film Festival e indicado ao Fangoria Chainsaw Awards EUA, entre outros reconhecimentos, evidenciando o apreço que o realizador despertou entre admiradores e experts do gênero), o longa tem como protagonista Hunter Schafer, atriz que se tornou conhecida em Hollywood por sua participação na série Euphoria (2019-2022) e na aventura Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (2023). Ainda que seja inovadora – e digna de reconhecimento – a decisão de colocar uma mulher trans à frente de uma trama na qual sua condição em nada influencia o destino da personagem, também é complicado a leitura subsequente, uma vez que o enredo trata de um cientista louco em busca de uma raça superiora e a incapacidade de sua cobaia em se tornar uma das suas reprodutoras. Como se percebe, não basta apenas transitar pela superfície. Se faz necessária uma compreensão além do óbvio. E, no caso presente, a resultado é, no mínimo, infeliz.

Gretchen (Schafer, não muito diferente do que costuma exibir no seu programa de televisão, mas ainda assim convincente como uma adolescente problemática) não está ali por sua vontade. Levada pelo pai junto com a nova família dele, a garota encontra-se em viagem num resort no interior da Alemanha. Foi lá que Luis (Marton Csokas, acostumado a esse tipo de persona acometida por perturbações) e Beth (Jessica Henwick, de Glass Onion: Um Mistério Knives Out, 2022) escolheram onde passar sua lua de mel, e por isso decidem voltar no intuito de recomeçarem suas vidas. O espaço também parece apropriado pela proximidade com um centro médico que poderá ser útil para tratar a caçula, Alma (Mila Lieu), que se mantém muda, sem se expressar por meio da fala. Porém, a primeira a ser afetada pela mudança é Gretchen, que insiste em ligar para a mãe nos Estados Unidos, apenas para ouvir sua voz na secretária eletrônica. Deslocada, encontra uma ocupação através de uma oferta de estágio com o proprietário das instalações, um estranhamente carismático senhor König (Dan Stevens, sem algo melhor para ocupar seu tempo, pelo jeito).

A suspeita de que algo não está certo se instaura de modo nem um pouco sutil. Pelo contrário, se escancara ao espectador desde o início, no melhor estilo: “fuja enquanto é tempo”. Mas, como é de praxe em situações assim, a personagem terá que insistir até o último recurso para se convencer do problema com o qual está lidando. Chamada a trabalhar na recepção do hotel, é logo avisada a não ficar por ali até tarde, garantindo que voltará para casa antes do anoitecer. Quando uma hóspede vomita no meio da lojinha de souvenirs, o comentário que ouve é: “não se preocupe, isso é comum por aqui”. A coisa só piora, no entanto, quando decide andar de bicicleta à noite é, sem aviso ou preparo, passa a ser perseguida por uma figura assustadora, que corre numa velocidade impressionante, dotada de olhos cor de fogo e um grito perturbador. Seria uma ameaça ou um pedido de socorro? A que a aparenta estar no seu encalço anseia por torná-la presa ou se trata de uma vítima tanto quanto ela corre o risco de se tornar em breve? As questões não tardam em ser esclarecidas.

O incômodo maior é a busca desesperada de Singer por uma atmosfera digna de suspense e terror. Tudo é por demais óbvio, e quando as manifestações fora do esperado começam a se suceder, se dão de modo tão exagerado que o espectador, invariavelmente, se verá colocado entre o riso e o espanto pelo descrédito. Outra questão a ser levantada é a irrelevância dos adultos: enquanto os pais mal parecem perceber o que está a acontecer ao redor deles, estará nas duas meias-irmãs, que até então mal se reconheciam como tais, o apoio necessário na procura por socorro. Além disso, há a dita mulher misteriosa, a ameaça grave que cada vez mais se aproxima da protagonista no intento de eliminá-la – essa não seria uma figura curiosa o bastante para despertar a atenção da audiência? Porém, ao invés de confiar no que tem à disposição, o diretor trata de seguir agregando possíveis fontes de perigo, como o policial que há muito teve seu distintivo recolhido, a médica que diz mais com os olhos do que através de suas explicações, e mesmo o anfitrião, que dá a impressão de estar desde o início apenas à espera do momento em que poderá se livrar de qualquer amarra narrativa e simplesmente “tocar o terror”, como se o descontrole fosse a chave para alcançar seus objetivos. Sem falar dos seus experimentos genéticos em uma Alemanha distante do olhar público: o passado que isso evoca é não apenas clichê, mas desgastante.

Se algo se salva em Cuckoo, portanto, é mesmo Hunter Schafer, que mesmo sem ousar muito além daquilo que já demonstrou em trabalhos anteriores, entrega o que dela se é esperado com competência e dedicação. Sua Gretchen é digna de pena, pela inadequação com o novo lar e a distância materna, mas também de renovada curiosidade, pois uma vez entendida a sua imprevisibilidade, é de se imaginar quão espontânea pode ser sua reação seguinte, garantindo ao menos algum tipo de vigor a uma história levantada mais a partir de conceitos sugeridos e menos sobre ideias melhor elaboradas. Se a loucura está a um passo de qualquer um e o trauma é o agente catalisador capaz de colocar abaixo os limites que concentram o indivíduo dentro de uma suposta normalidade, Tilman Singer reforça seu descontentamento em apenas explorar estes meandros para investir no apelo visual, buscando forma em detrimento do conteúdo. Há muito em cena, e o que reúne não é desprovido de valor. Mas sua incapacidade em trabalhar com as peças que ele mesmo adiciona aponta para um caminho tortuoso e atordoante, independente do lado da tela em que se esteja.

Filme visto durante o 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024

Robledo Milani

é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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