Dahomey

12 ANOS 68 minutos
Direção:
Título original: Dahomey
Ano:
País de origem: França / Senegal / Benim

Crítica

7

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Sinopse

Os tesouros historicamente saqueados do Reino do Daomé são devolvidos ao Benin, na África, depois de anos depositados na Europa.

Crítica

A dívida ancestral dos governos europeus em relação aos povos colonizados durante o período das conquistas marítimas, principalmente a partir do século XV, é tão notória, quanto imensa. Visitar espaços reconhecidos e consagrados, como o Museu do Louvre (Paris) ou o British Museum (Londres), por exemplo, significa não apenas se deparar com obras de imenso valor (tanto factual, quanto simbólico), mas também testemunhar a selvageria e a prepotência de homens que invadiram de forma consistente e regular nações estrangeiras e nelas promoveram saques e pilhagens, levando consigo aquilo que, de modo inegável, não os pertencia. Se a evolução dos tempos permite não apenas reconhecer os erros do passado, mas também buscar meios para repará-los no presente, o movimento testemunhado em Dahomey, primeiro longa da cineasta franco-senegalense Mati Diop desde sua consagração com Atlantique (2019), é não só uma questão de justiça, mas também um passo consciente em busca de um perdão ainda em debate – afinal, quem no direito poderá concedê-lo? Mas é, por outro lado, um gesto mais simbólico do que profundo em efeitos e repercussões, tal qual este filme, que aponta para uma discussão tão urgente quanto necessária, mas, ainda assim, se mostra satisfeito em apenas indicar posições, sem, no entanto, confirmar interesse em atravessar tais portas e propor as reais questões que este debate há tanto clama.

A partir de um registro documental, Diop – que também é atriz, tendo atuado em filmes como Com Amor e Fúria (2022), de Claire Denis – expande seu olhar através de uma interpretação filosófica e reflexiva, propondo um diálogo que a imagem apenas circunda, hesitando em nele se alongar. Porém, quando assim o faz, o recurso até então praticado com bastante entusiasmo é rapidamente deixado de lado, sem maiores pesares. Eis um jogo de cena que denota uma perspicácia em sua construção, pois de certo é elaborada, ainda que exiba simplicidade num olhar apressado. O estado francês decide, em uma atitude revolucionária, ainda que mínima dentro de um contexto amplo, que 26 peças – estátuas, relíquias, máscaras – que estavam em exibição em Paris, e que haviam sido roubadas do Reino de Daomé, serão devolvidas ao Benin, na África Ocidental. A ação provoca reações em ambos os lados – entre os que tratarão de se despedir de tais obras, visto que irão retornar ao seus lugares de direito, e os que pela primeira vez tomarão posse daquilo que lhes é seu por herança. Mas o que tem a dizer o objeto de tamanha comoção?

Eis, então, o título do filme: Dahomey, que em português é nada mais do que Daomé, nome pelo qual Benin foi conhecido por mais de três séculos, entre 1600 até 1904, quando um reinado próspero incrustrado na curva atlântica africana, tendo como fronteiras Togo, Burkina Faso, Níger e Nigéria, além do oceano. Importante potência regional, chamou atenção dos europeus pelo comércio do trabalho escravo. Tanto que a exploração esgotou as fontes do país, não só os braços, mas também os bens e frutos. E foi nesse fluxo que não dezenas, nem centenas, mas milhares de posses de valores incalculáveis, sejam artísticos, históricos ou geracionais, acabaram sendo levados embora em conjunto. Eis que, em 2023, a benesse dos que dominam os meios concordam em mandar de volta… 26 destes artigos. Não 25, nem mesmo 30. São apenas vinte e seis. E será justamente esse, o vigésimo sexto, que terá o que dizer frente a perspectiva de mais uma vez estar em casa. Não que esse seja um retorno. Trata-se de mais uma despedida. Afinal, a separação é fato. E o que encontrar adiante, um mistério.

Com pouco mais de uma hora de duração em mãos – precisamente, são apenas 68 minutos – Diop vai direto ao ponto. As reflexões propostas pelo Número 26 (o chamaremos dessa forma, certo?), por mais que não sejam revolucionárias – nem mesmo originais, por mais que sejam pertinentes – ao menos cativam pela evoluções dos questionamentos que passam a ser enumerados. A imagem em cena se ocupa do preparo para a viagem de volta de cada um destes artefatos. Ao espectador, no entanto, será inevitável refletir a respeito do movimento contrário, de como cada um destes tesouros foram arrancados de seus postos originais e, após cruzarem oceanos, foram – e seguem sendo, se não estes específicos, milhares de outros – exibidos por detrás de fortes esquemas de segurança não somos como sobras de guerra, mas troféus que mereciam ser ostentados. Tudo isso, enfim, ganha outro impacto ao chegar em Benin. Pois, uma vez na sua terra natal, a comoção será outra. E diversa. Tanto pelos que celebram uma esmola vista como imensa conquista, mas também por aqueles que indagam: “e o resto?”. A diretora, assim, vai do colonizador ao colonizado, mas também do saqueador ao criador. A propriedade é dada a quem a merece.

Eis, portanto, a chave de entendimento de Dahomey: não só pelo que mostra, mas mais ainda pelo que permite ficar no subentendido, na consequência dos seus desdobramentos e no debate que tem, nesse movimento, o seu início. O encontro de jovens e universitários que ocupa grande parte da segunda metade do filme é a verdadeira alma dessa discussão, pois abraça os significados e reais intenções desse ato que parece ter sido proposto apenas entre nações, mas diz respeito a cada um dos seus habitantes, pequenas partes de um todo maior e mais complexo. É assim, também, que Mati Diop se permite não buscar uma conclusão, abrindo-se à reflexão sem a ânsia de um desfecho. Perguntas são feitas, levantamentos passam a se acumular, e o que antes parecia ser apenas festa e alegria, motivos de comemorações, ganha espaço entre debates acalorados e provocações que vão além de uma mera exposição celebratória. Aqui se tem um filme de começos, não em busca de um fim, mas satisfeito em se colocar enquanto ponte, ligando fatos e permitindo revelações. O depois, portanto, está tanto em quem o assiste, como também nos que ocupam o centro da tela, tanto hoje, quanto amanhã.

Filme visto durante o 74o Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024

Robledo Milani

é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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