Flamin’Hot: O Sabor que Mudou a História

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Ano: 2023
País de origem: EUA

Crítica

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Sinopse

Zelador de uma fábrica de salgadinhos, o hispânico Richard tem uma ideia incrível que cria um fenômeno pop. Prestes a ver seu emprego de limpador da linha de produção de snacks ir pelo ralo, ele vai buscar na tradição picante do México a salvação desse negócio milionário.

Crítica

Dirigido por Eva Longoria, Flamin’Hot: O Sabor que Mudou a História é um conto de fadas fofinho baseado numa história de vida real, a do hispânico Richard Montañez. Ele ascendeu socialmente depois de criar o sabor picante da linha Cheetos, iguaria que revolucionou o mercado de salgadinhos nos Estados Unidos. Contado em primeira pessoa, é um autorretrato romântico da trajetória desse personagem nascido numa família pobre que, por conta da força de vontade, da esperteza e do apoio de pessoas próximas, se tornou um bem-sucedido executivo da indústria alimentícia. Não se trata de uma imagem realista, algo que a realizadora deixa muito claro nos instantes em que Richard (Jesse Garcia) confessa ter aumentado certos pontos do relato para ele ficar mais interessante no cinema. Mas, afinal de contas, o homem é dono da própria história, ou seja, a propaga da maneira como bem entender, sem compromisso com a verossimilhança. Baseado no livro A Boy, A Burrito and a Cookie: From Janitor to Executive, escrito por Richard, o longa-metragem se atém a um sujeito aparentemente condenado a trabalhos subalternos, mas não está preocupado com a consistência do discurso social ou com o desmonte das falácias empresariais e, sequer, deixa evidente que Richard é a exceção que não deve ser tomada como regra. A leveza da abordagem nem dá espaço para questionamentos sobre meritocracias e afins, pois está a serviço de um enredo repleto de fantasias edulcoradas que rompem com a realidade.

Com uma fotografia de tons quentes assinada por Federico Cantini que ameniza a abrasividade até da miserabilidade do protagonista, Flamin’Hot: O Sabor que Mudou a História idealiza o processo de crescimento pessoal de Richard. Trata-se de um daqueles filmes leves que existem para colocar no horizonte exemplos de sucesso que deveriam servir como inspiração. Da infância pobre ao largo da colheita de uvas que sustentava à família ao êxito improvável, testemunhamos Richard se envolvendo com o tráfico de drogas, mas sem que o filme se debruce minimamente sobre os mecanismos de exclusão capazes de levar hispânicos hostilizados nos Estados Unidos a recorrer à criminalidade como forma de ter algum poder econômico. A fase narcotraficante do personagem é enxergada como alternativa viável nesse mundo de portas fechadas e vários nãos seguidos. Eva Longoria se distancia das sombras para enfatizar o quanto de luz persiste na comunidade latina que representa um contingente considerável da população total dos Estados Unidos, mesmo sendo constantemente tratada como um bando de cidadãos de segunda categoria. Depois de muito penar, Richard consegue emprego na Frito-Lay como faxineiro. Sua curiosidade e perspicácia são imprescindíveis para ele deixar de ser um higienizador de departamentos e ter a própria sala. O filme se empenha em mostrar que tudo pode ser, basta acreditar, colocando na conta do protagonista a responsabilidade total por sucessos e fracassos.

Mesmo não estando comprometido com a realidade, evidentemente almejando ser uma história inspiradora protagonizada por alguém antes fadado ao servilismo, Flamin’Hot: O Sabor que Mudou a História deixa sugerido nas entrelinhas os preconceitos e demais barreiras enfrentadas por Richard e sua família. Claro, é demasiadamente romântica a visão de sujeitos entrando e saindo do mundo das drogas por simples necessidade (como Richard, há o antigo chefão do tráfico que oscila entre a liderança do crime e o trabalho na fábrica). Também é inocente a representação dos caminhos que levaram Richard à conexão com o CEO do império financeiro sentindo os efeitos da crise econômica dos Estados Unidos nos anos 1980. Porém, o longa não tenta esconder o seu idealismo e a estratégia de envergar a realidade em prol de um resultado realmente positivo e motivacional. Tanto que o artificialismo na hora de contar a história factual está persente nas interpretações, todas alguns tons acima do naturalismo, algo evidenciado no trabalho sempre competente de Tony Shalhoub (intérprete do presidente da Frito-Lay) e mesmo na consciente caricatura hispânica composta por Jesse Garcia. Para o filme ser um pouco mais do que uma história divertida e conduzida de acordo com intenções amenizadoras claras, Eva Longoria poderia deixar bem mais em evidência que tem consciência dos mecanismos utilizados.

Por exemplo, a realizadora poderia enfatizar melhor que vemos o enredo contado pelo vencedor disposto a minimizar problemas, tratando-os como etapas intermediárias rumo ao sucesso, e destacar os êxitos do homem a quem muitos tentavam diminuir. Assim como o próprio Cheetos Flamin’Hot visava abocanhar a fatia hispânica de consumidores norte-americanos, Flamin’Hot: O Sabor que Mudou a História é feito sob medida a essa parcela de consumidores de cinema nos Estados Unidos, haja vista a constante valorização da família, as brincadeiras com estereótipos e a celebração de um latino como o salvador da pátria do império capitalista estadunidense. Mas, um dos problemas mais comuns em cinebiografias de homens notáveis também está presente aqui: a restrição da mulher ao papel de guerreira garantidora do lar e incentivadora dos planos masculinos que podem provocar uma revolução positiva. Judy (Annie Gonzalez), esposa de Richard, está sempre ao lado do marido, apoiando as suas decisões, sendo muitas vezes uma voz sensata, mas sem ganhar espaço para se expressar como indivíduo único. É uma reprodução da máxima tradicional (e machista): por trás de todo grande homem, há sempre uma grande mulher. Nessa fábula quadrada a respeito de rapazes vencendo obstáculos a fim de prover às suas famílias uma vida melhor, não há espaços para o questionamento crítico dos discursos corporativos, pois tampouco há alternativas viáveis ao sucesso. Sobra carisma, falta consciência.

Marcelo Muller

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