O Menino e a Garça

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Título original:
Ano: 2023
País de origem: Japão

Crítica

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Sinopse

Mahito se muda para a propriedade campestre da família depois de perder a mãe durante a guerra. Acontecimentos estranhos o levam a uma torre antiga e isolada, lar de uma garça cinzenta que lhe dá acesso a um mundo fantástico partilhado por vivos e mortos.

Crítica

Um dos mais importantes cineastas em atividade, Hayao Miyazaki há algum tempo vem falando de aposentadoria. Porém, seus admiradores já nem se alarmam mais quando ele anuncia uma nova produção como sendo provavelmente a sua última, pois Miyazaki acaba tentado pela possibilidade de contar novas histórias e volta à posição criativa que lhe trouxe respeitabilidade no mundo. O Menino e a Garça é a mais nova realização do mestre que novamente coloca em evidência um órfão encarando a realidade dura na qual está inserido por meio de uma fuga ao reino da fantasia. Em A Viagem de Chihiro (2001) a heroína é uma garota metida numa aventura espetacular depois que os pais foram transformados em porcos – Chihiro não é órfã, mas está privada da companhia dos pais na missão que a obriga a amadurecer rápido para ser bem-sucedida. Não era diferente em Meu Amigo Totoro (1988), obra-prima no qual duas irmãs se mudam ao interior onde ficam sozinhas, pois o pai trabalha demais e a mãe está hospitalizada. Como esses dois exemplos, são vários na filmografia do realizador japonês em que uma situação fantástica serve de metáfora à maturidade necessária para enfrentar as coisas difíceis da vida. Desta vez, Mahito acaba de perder a mãe na Segunda Guerra Mundial e se muda com o pai ao interior para recomeçar, lá onde encontra o seu portal à fantasia (como em Meu Amigo Totoro).

Os primeiros minutos de O Menino e a Garça são visualmente deslumbrantes e dramaticamente intensos, como de costume não apenas na obra de Hayao Miyazaki, mas no portifólio do Ghibli, estúdio cocriado pelo realizador japonês nos anos 1980. Aliás, a perspectiva infantil da Segunda Guerra Mundial lembra imediatamente a de Túmulo dos Vagalumes (1988), este certamente um dos títulos mais impressionantes e tristes da extensa filmografia da turma do Ghibli. Voltando ao novo de Miyazaki, nele Mahito é acordado no meio da noite pelo alvoroço provocado nas cercanias por um incêndio no hospital onde a sua mãe trabalha. O diretor faz questão de ser minucioso nesse instante que antecede a perda e o trauma, chegando a mostrar o protagonista vestindo meticulosamente a roupa para ir à rua, calçando os sapatos, certamente gastando recursos preciosos para tornar aquele momento vivo. E a cena mais impressionante de todo filme vem logo a seguir, a de Mahito correndo em direção ao prédio ardente com a mãe dentro, gradativamente sendo engolido por uma confusão visual provocada por chamas e ondas de calor – simbolicamente, o derretimento da sua realidade. É um modo imagético muito expressivo para retratar o impacto emocional daquele instante na vida de um menino que não tem todas a ferramentas para lidar com o luto. É um modo de mostrar essa dor que invade o peito de Mahito.

Pena que o filme não exiba nenhum outro instante tão inspirado dos pontos de vista estético e narrativo, patinando num emaranhado de esquisitices mal amarradas e sem tanto senso de propósito. Mahito chega à propriedade campestre que foi da família da mãe, mal tem tempo de se adaptar ao fato de que a sua tia se casou com o seu pai e já é convocado por uma garça-real à aventura em outra dimensão. O Menino e a Garça não elabora de modo consistente o luto do menino e sua dificuldade de adaptação, fazendo pouco até mesmo com a mentira envolvendo a briga dos moleques seguida da agressão a si próprio (para chamar atenção, para ficar fora de ação, talvez?). O filme se perde ao mergulhar na fantasia o protagonista semelhante em alguns sentidos a vários outros da carreira de Hayao Miyazaki. E ele não tem o mesmo carisma ou a mesma profundidade emocional de seus semelhantes. Mahito tem como escudeira a garça-real que ora é companheira agourenta, ora parceira que tira o humano das enrascadas e o ajuda a progredir na realidade diferente – caracterizada por versões alternativas de pessoas que ele deixou no mundo real ao mergulhar nesse universo novo. O roteiro assinado por Miyazaki não investe nas conexões afetivas, é apressado na apresentação, no desenvolvimento e na resolução dos conflitos, sem contar que demonstra receio de ir além na operação de mesclar as realidades.

Mahito está em busca da madrasta/tia com quem divide a essencial herança de sangue. Mas, essa hereditariedade é pouco tida como um fator afetivo ou mesmo mitológico, sendo utilizada somente como desculpa para diálogos rasos sobre sucessões e pertencimentos. À medida que se embrenha na realidade sobrenatural repleta de duplos e criaturas exóticas, como os periquitos australianos gigantes e as almas que ascendem ao céu para nascer na Terra, o longa-metragem vai perdendo intensidade, principalmente por não conseguir construir uma jornada empolgante tendo como pano de fundo a guerra e as particularidades familiares. Mahito é um protagonista apagado, alguém que nem pode ser definido pela saudade da mãe, tampouco como criança amedrontada pelo futuro ou mesmo mobilizado pela excitante jornada. Há elementos pouco elaborados no filme, como a personalidade do pai de Mahito, que se casa com a cunhada sem esboçar sinais de tristeza pela morte recente da esposa. Ele lucra financeiramente com a guerra, pois fabrica itens bélicos em série. Hayao Miyazaki não utiliza a contradição do homem que perdeu o amor para a guerra que ele ajuda a fomentar com a sua força industrial. E assim, essa tensão moral e até existencial simplesmente se esvai, não deixando nenhum rastro. O encontro de Mahito com a jovem controladora do fogo que evidentemente é a versão alternativa da mãe é outro ponto desperdiçado por esse filme que começa tão bem e termina em decepção.

Marcelo Muller

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