7 nov

Mussum: O Filmis :: “Todo mundo brinca que foi uma parada espiritual, que o Mussum baixou em mim naquele momento”, revela Yuri Marçal

Yuri Marçal é um fenômeno na internet. Com mais de um milhão de seguidores apenas no instagram, tem se mostrado um comediante de mão cheia não apenas nas redes sociais, mas também nos palcos, em espetáculos de stand up comedy, e também na televisão e no cinema. Nesse último, a conquista é mais recente, mas igualmente rápida. Com apenas quatro longas – até o momento – no currículo (a estreia foi Vale Night, em 2022, ou seja, no ano passado), já garantiu um kikito pra chamar de seu em um dos mais importantes encontros de cinema do país: como Melhor Ator Coadjuvante no Festival de Gramado por Mussum: O Filmis. Ele, em cena, interpreta justamente o protagonista, em sua versão jovem – mais adiante, o mesmo personagem é vivido por Ailton Graça. Fenômeno de público e de crítica, o projeto caiu no gosto popular ao resgatar a trajetória de um dos maiores nomes do cenário cultural brasileiro, o eterno trapalhão e integrante original do grupo Originais do Samba. Já em cartaz nos cinemas, tem sido descoberto agora por um público ainda maior. E a gente aproveitou esse momento especial para conversar com o artista, que falou mais sobre como se envolveu com esse projeto e a importância da representatividade preta em cena. Confira!

 

Olá, Yuri! Me conta, como o Mussum entrou na tua vida?
Cara, acho que o Mussum sempre esteve presente. Pra ter ideia, o Mussum morreu quando eu tinha um ano de idade, em 1994. Mas só fui descobrir isso já adolescente, com uns 11, 12 anos. Porque ele estava sempre ali, o programa continuava sendo transmitido, com reprises e os filmes. Então, soube muito tempo depois. Era uma referência, tanto como artista e comediante, mas também como um espelho mesmo. Assim como o Helio De La Pena e o Jorge Lafond. Até hoje, quando quero estudar comédia, assisto a vídeos desses caras. Prestando atenção na técnica deles, sabe? Sempre fui muito fã.

Yuri Marçal

E o convite para o filme, como surgiu?
Bom, essa é outra história. A Jennifer Dias, minha noiva, que também está no elenco, soube primeiro. Ela participou de um outro projeto com o Silvio Guindane, e foi quando ficou sabendo que ele iria dirigir o filme do Mussum. E me contou: “você é fã do Mussum, fala com ele e veja se consegue participar também”. Ela até chegou a me dizer que quem iria interpretar o Mussum ainda não havia sido escolhido, mas nunca sonhei em me oferecer para esse papel. Tanto que levei uma semana criando coragem, até que no último dia dei um jeito. Sabe, na real sou muito tímido, e nunca pedi nada a ninguém. O que é um erro, pois tem que dar a cara à tapa, tem que pedir e ir atrás, esse é o melhor caminho. E foi o que fiz. O mundo é das pessoas que são cara-de-pau! Mas, do meu jeito, disse pro Silvinho: “soube que tu vai fazer o filme do Mussum, não tem nada pra mim, não? Topo qualquer coisa, de tanto que admiro o cara”. Foi ele que pensou e me colocou logo para fazer o teste pro Mussum. Era época da pandemia, fiz online, e nem lembro como foi. Não sei o que aconteceu.

 

Tu não tem lembranças desse primeiro encontro?
Eu nunca dei PT na minha vida. Gosto de beber legal, mas sempre me mantive sóbrio. Nunca tive apagão. Só que, nesse teste, foi um lance quase espírita. No dia anterior, virei uma quantidade ridícula de vodka. Muito suco junto. E, quando liguei a câmera, o Silvinho já começou a rir, me aplaudir, “olha aí, esse é o nosso Mussum”, e eu sem entender nada. Lembro do primeiro take que fez comigo, e a partir daí, não tenho ideia do que aconteceu. Horas depois, estava na minha sala, e a Jennifer é que me acordou. Me disse que eu estava repetindo palavras desconexas enquanto dormia, deitado no chão. Acho que foi por causa da adrenalina. E o que me disse foi: “Yuri, acorda, a Marília Mendonça morreu”. Era muito fã dela, então acordei num susto. Quando as coisas começaram a voltar, só pensava “meu Deus, devo ter feito merda”. Mas acho que não, tanto que passei (risos).

 

Mas o que te disseram?
Que havia sido uma catarse. Que tinha sido um absurdo, que me viam e era como se estivessem diante do Mussum. Mas todo mundo brinca com isso, que foi uma parada espiritual, que o Mussum baixou em mim naquele momento. Toda vez que conto essa história, me arrepio muito. Depois, o Silvinho me mostrou um trechinho do vídeo que fiz, e olhava pra aquilo como se fosse outra pessoa, não parecia eu. Mas depois veio a preparação, muito estudo, muita pesquisa. Fui na Mangueira, vi muito vídeo antigo. Tem pouco do Carlinhos, que é o personagem que faço, a juventude do Mussum. Então foi um lance de incorporar mesmo.

Yuri Marçal e o kikito conquistado por “Mussum: O Filmis” no Festival de Gramado

Os ensaios foram momentos de grande entrosamento entre vocês, pelo que fiquei sabendo.
Eu, o Ailton Graça e o Thawan Lucas, que interpretamos o Mussum em três fases diferentes, trocamos muito. Cada um pegou bastante do outro. Tivemos uma sintonia enorme entre nós.

 

Cinema, teatro, televisão: o processo é sempre o mesmo, ou há métodos diferentes para cada meio?
Os processos são diferentes, sim. Mas, como sou ator de formação, fiz cinco anos de teatro e televisão, pego muito de onde estou para compor cada personagem. Só que nunca tinha feito alguém que existiu. Essa é uma outra parada. Lembro de ter ido conversar com o Robson Nunes, que fez o Tim Maia (2014), e com a Andréia Horta, que fez a Elis (2016), pra ter a visão deles, e os dois me confirmaram que é uma outra pegada. Ainda mais figuras que foram muito famosas, é uma responsabilidade imensa. Digo que entrei no caminho quando vi o Augusto e o Sandro, ambos filhos do Mussum e que conviveram bastante com ele, que foram no set, acompanhar as filmagens. O Augusto me chamou e disse: “puxa, mano, tu tá o meu pai”. Nesse momento é que percebi que estava no caminho certo. Se o filho falou, estou satisfeito.

Vocês não dividem cena um com o outro, mas a parceria foi forte entre os três que interpretam o Mussum.
Nossa, fomos morar juntos. Muita coisa, mesmo. Começamos a criar. Um olhar, uma entonação de voz, o jeito de colocar a mão, tudo veio de um para o outro. Fomos criando conexões que estão presentes nos três. Entre a Cacau e a dona Neusa foi a mesma coisa. Elas não tem nada a ver uma com a outra, fisicamente falando, mas estão parecidíssimas no filme. Tivemos muita troca na construção do personagem, e vendo o filme, fiquei feliz ao perceber que isso se vê na tela.

 

Tu e a Cacau Protásio possuem cenas juntos. E vocês já haviam trabalhado antes um com o outro. Como foi esse reencontro?
O entrosamento sempre ajuda. Como se pode ver nas cenas entre eu e a Jennifer, minha namorada. Embora ela seja insuportável (risos), nós temos processos diferentes. Eu não ensaio, só faço o que o diretor manda. Funciono muito na “ação”, sabe, no improviso. E ela não, quer ensaiar trinta e oito vezes, se for possível. Claro, ela que está certa, o errado sou eu. Tem que ensaiar mesmo até buscar a perfeição. Então, tive que ceder, até chegarmos num meio termo: entre vinte e zero, ficamos nos dez ensaios. E com a Cacau foi a mesma coisa, ela é muito generosa. Troca contigo, chama o diretor de fotografia pra dar ideias, é uma grande parceira. Os dois crescem. Aprendi com ela muito enquanto ator e como ser humano também.

Yuri Marçal

Deixa trazer uma provocação: Mussum: O Filmis tem muito forte a questão da representatividade preta, mas, por outro lado, conta com um roteirista e um produtor brancos, ou seja, quem decidiu que história contar e quem pagou por tudo. Como se deu esse equilíbrio?
A questão da produção vai muito no que se transformou durante esse tempo todo. A ideia surgiu mais de dez anos atrás. Era outra coisa do que se vê agora. A gente não tem, ainda, grandes produtoras pretas – e a gente sabe o motivo disso. Mas estamos no caminho. Então, quando a Camisa Listrada abraçou o projeto, até por serem fãs também, era o momento de aproveitar a oportunidade. Já o roteiro veio baseado no livro do Juliano Barreto, mas passou pelo olhar do Paulo Cursino. Ou seja, era uma preocupação: “como vai ser, já que o cara que está com a caneta é outro?”. Mas, de verdade, não desmerecendo nenhum dos dois, ficou totalmente com a gente.

 

Se fosse um roteirista preto, ou um produtor preto, não teria diferença?
Óbvio que teria. Mas a gente meio que tomou de assalto o filme. Com todo respeito, repito, mas o trabalho deles foi até certo ponto. A partir dali, era com a gente. Toda a visão do filme partiu de dentro. São detalhes que um cara que é branco não vai pegar. Vamos seguir a cronologia, a história, mas os pormenores partiram da gente. Tivemos total liberdade para improvisos e para sugerir mudanças. Foi algo que me deixou feliz. Vários cacos que coloquei, que nem pensei que iriam entrar, acabaram na versão final. Foi legal. Eram cacos do Mussum, e funcionaram. O próprio Cursino disse isso, que ele assina o roteiro, mas tanto o Silvinho, quanto os atores, tinham liberdade para acrescentar ou mudar o que a gente julgasse necessário. Ele acompanhou as gravações, e nos deu o conforto para propor estas mudanças. Em nenhum momento se incomodou com nada que sugerimos, nem na preparação, e muito menos nas filmagens.

 

Você é de natureza um comediante. Assim como o Mussum. E ganhou o kikito de Melhor Ator Coadjuvante e o de Melhor Filme, entre outros, no Festival de Gramado. Como foi ocupar este espaço?
Foi muito doido. A galera tem um certo preconceito com a comédia, né? O Christian Malheiros, que é um grande amigo, falou algo que levei pra vida: “a turma da arte tem a comédia como a prima pobre dos outros gêneros”. Isso em geral, o pessoal tem essa visão. A comédia nunca está nas premiações, nunca vai ao Oscar. E vou dar a real: é mais difícil fazer comédia, tanto na escrita, quanto na direção ou atuação. E a comédia é o único que tem mais de trinta subgêneros, diversos gatilhos cômicos. É difícil o aprendizado e a atuação da comédia. Você não via esse reconhecimento. O Paulo Gustavo foi um gênio, e nunca foi indicado a prêmios por isso. Estar em Gramado com um filme como Mussum: O Filmis, que é uma dramédia, foi incrível. Tanto a Cacau Protásio quanto o Ailton Graça, são excelentes comediantes, e agora estão vendo que ambos são também ótimos atores dramáticos. Sem modéstia alguma, veja o meu caso: falo que sou comediante, mas tenho formação de ator, e nesse filme está um outro lado meu. É muito legal. E foi gigante ter ganhado esse kikito.

Yuri Marçal (ao centro) e colegas comemoram os kikitos conquistados no Festival de Gramado

Mussum: O Filmis tem uma responsabilidade enorme, de levar as pessoas de volta aos cinemas. É um filme que tem essa força?
Com certeza. Além de tudo isso, é um filme que vai ganhar muito no boca a boca. Tenho certeza que todo mundo que for assistir nos cinemas vai sair falando. Ninguém vai dizer “achei ok”. Porque é muito bom! Você tem que ver, vai rir muito numa parte, e na mesma cena, logo em seguida, vai começar a chorar. Gargalhadas e lágrimas. É um filme para o público. Isso é importante. Já tem um apelo grande por causa do Mussum, mas tem também esse elenco incrível. E se torna maior ainda, pois o conteúdo entrega. É uma experiência completa.

Entrevista feita em Gramado em agosto de 2023

Robledo Milani

é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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